sexta-feira, abril 17, 2009

texto da Mari que saiu hoje no O Povo, como parte do suplemento sentidos, em homenagem ao aniversário de Fortaleza desde segunda-feira. Mari escreveu para a edição Olfato, dessa sexta-feira e o desafio era "encarnar" Fortaleza e ser uma mulher de duzentos e oitenta e três anos.



A LINHA RECORTADA DE MIM

E se Fortaleza pudesse dizer de si mesma ? O que seus 2,5 milhões de habitantes ouviriam ?
Escritora, Mariana Marques encarna a capital. Vasculha aromas,lamenta saudades.

Que eu tenha aprendido em mais de duzentos anos a esconder meus cheiros mais preciosos, as histórias em segredo, a testemunhar em silêncio minhas últimas casas virarem prédios. Meu nome difícil, Fortaleza, de garras e grades, se solta quando penso nos tapetes de estames de jambo, avermelhando minhas calçadas tortas, a seiva bruta e elaborada de todas as minhas árvores. Meus passantes vieram um dia do interior, não faz muito. É por isso que quando cai a tarde, cheiro a tapioca, a café passado no pano, broa. Sou rural do lado de dentro das casas dos meus moradores mais antigos, quando teimam em pousar suas cadeiras na calçada, ver o lado de fora, conversar fiado, rir dos outros. Já seus filhos e netos gostam de expresso, massa folheada, de criar cachorro de raça, de televisão a cabo, de andar de carro mesmo que seja para ir à esquina. Ninguém caminha se puder dirigir, nem no meu bairro mais chique e cheio de rondas e oficiais. E meus passantes têm mania em me deixar (ou querer). Achar o novo, um outro lugar: que tenha metrô, que tenha livrarias de bairro, onde as pessoas andem a pé, onde toque rock. Eles, malas nas mãos, e eu um projeto de partir, uma paixão sem amanhã, um lugar-muro, uma intenção de deixar. A vida fosse um filme, eu faria qualquer papel. Papel de uma cidade que nem eu, onde sobra beleza, mas como ando depressa por esses tempos de duzentos e oitenta e três anos, os passantes raramente veem como é bonita a linha recortada do meu horizonte, e não me notam os detalhes. Feições de mar, quando sobem os pingos invisíveis de maresia - cheiro de peixe morto, de pescador, de natação, de criança. Gramado de estádio, cheiro de tangerina tira-gosto, de cimento, de suor, de homem ouvindo rádio grudado ao ouvido. Ando depressa, e os meus passantes raramente me notam as feições, e só sentem o cheiro quando é muito forte, quando o carro do curtume passa de um porto ao outro, carregando as vacas mortas, os bezerros, que vão por aí virar manta, virar tapete, sapato de bico fino. Em janeiro, cheiro a protetor solar do homem branco que chega para consumir, para arrematar, para procurar o bronzeado, as coxas, o sangue mestiço das moças. Cheiro a visita dos que me deixaram, cheiro a São Paulo, escapamento de carro. Aumento de tamanho, aporto transatlânticos. O sol que me queima dói, prega a pele no jeans, dentro do ônibus, ouvindo o programa policial dar a notícia das facadas, dos furtos, das brigas no meio da rua. Sou uma mulher quente, mas chovo em março graças a São José. Alago a maioria, as alamedas sem nome, os bairros sem pavimento. Cheiro esgoto, leptospirose, ratos, lixo, azedo. Desabrigo, dou perda total na vida de centenas, que choram na televisão local, pedindo ajuda ao serviço de utilidade pública do político que apresenta o programa. Do outro lado de mim, em alguma sacada de um restaurante bom, vinho bom, moças vestidas de preto, de guarda-chuva florido em punho, aproveitam o clima ameno, se transportam para um lugar fora de mim onde o calor não oprime, não limita, não desconvida. Cheiro de perfume francês, de uva pinot noir, de molhado, de doce. Andam devagar na chuva, sobem na bicicleta, ouvem Cartaz do Fagner, celebram os pingos, o frescor, a trégua do calor, ligam o parabrisa no máximo, param para tomar um café na galeria da avenida, um chá quente, têm vontade de amarrar um pano qualquer no pescoço, fazer cara de habitante de lugar que tem metrô, que tem livrarias de bairro, onde as pessoas andem a pé, onde toque rock. Mas sou só eu, chovendo em março. Bonita pra chover em março. Depois é outubro, e eu vento, e eu derrubo a maioria, as alamedas sem nome, os bairros sem pavimento. Do outro lado de mim, uma vela desliza no mar, um campeonato de kitesurf, os homens mais bonitos do mundo, os corpos, a festa da noite encerra, os narizes congestionados, e eu levanto as saias, eu vento, eu balanço os cabelos das moças. E ser uma cidade é esquisito, é desassossegado, é delicioso. A gente conta os anos, a densidade demográfica, o povo faz bolo, sai no jornal, os habitantes se multiplicam, a Iracema se enfeita de pedra colorida. O aniversário passa, os velhos morrem, os novos também morrem, é acidental e triste. No mesmo segundo, sou várias, aconteço difusa, guardo segredos: testemunha. E a diversidade me permite sentir o cheiro de algum quarto, em que a esta hora meus passantes se enrolam em brocados, lenço de cambraia, álcool, camisola, cama, incenso, mirra, ouro, os três reis magos, saliva, seiva, floema, estames de jambo, nudez. Ser cidade é o diverso - e guardar.

*Mariana Marques nasceu em 8 de junho de 1982, no momento em que o sol estava em gêmeos e acontecia o maior acidente da aviação brasileira até então. Feito vingança, decidiu ser alegre. É autora da pequena novela Transatlântico (La Barca Editora, 2009). Mora em Fortaleza e continuará.

quarta-feira, abril 15, 2009

A casa do meu avô... nunca pensei que ela acabasse, tudo lá
parecia impregnado de eternidade.
Manuel Bandeira

A casa do meu avô foi diferente, continua lá: linda, acolhedora, bem cuidada,
guardiã de segredos, amores vividos, amores acabados, carinhos e muita saudade. Saudades de todos que já se foram mas são lembrados com alegria. Saudade de tudo que vivemos lá, na casa do meu avô... Tudo isso, graças ao cuidado e zelo das minhas tias Nadyege e Idelvita, que tentam de todas as maneiras conservá-la. Cada canto tem a sua história, as cadeiras na calçada que continuam embalando as conversas nas noites frias, a mesa grande e farta, o barulho dos chocalhos do gado ao amanhecer, o canto maravilhoso dos pássaros, o cheiro do café com tapioca, cuscuz, queijo assado, coalhada.

Saímos de Fortaleza na quinta-feira pela manhã. A chuva nos acompanhou durante a viagem. Asfalto molhado, o sol escondido e a vontade de chegar logo ao destino. Eramos sete, os visitantes. Na chegada, palmas, choro e muita risada. A turma de lá é bem maior. Didi, Idel, Gertrudes e Rosário (são suas "filhas", adotadas ainda crianças). A Camila que é filha do Beto e da Luiza já está morando com as tias, precisa estudar. Inteligente, educada e muito sabida para os seus sete anos. Beto toma conta da fazenda ajudado por Anchieta e Manoel, irmãos de Luiza. Anchieta é casado com Marta. Maria é a matriarca dessa família, é muito querida por todos nós. É muito engraçada e dedicada. O passeio durou três dias e pareceu dez.
Falamos das lembranças, foi uma convivência alegre, tranquila, amorosa. Stenio inquieto, contador de histórias, de amores acabados e futuros amores. José Gerardo é o retrato da paz, da tranquilidade, do bom senso, Meire Celi nos deu muitas lições de garra e coragem na luta diuturna da sua recuperação, Lulu e Hesíodo vivendo um amor cheio de ternura, de atenção, esse amor que a gente fica feliz de poder acompanhar de perto. William sempre com suas brincadeiras e é muito querido de todos. Amei o passeio, fizemos planos. Planos que poderão ou não ser realizados. Na despedida o choro foi maior... era domingo, cedinho enfrentamos a estrada de volta e novamente a chuva nos acompanhou até Fortaleza.