quinta-feira, outubro 08, 2009

saudade

O DISCURSO

Às 18:00 h do dia 17 do mês de maio do ano da graça de 1947, nasce em Fortaleza á rua Dom Joaquim, uma criança do sexo masculino, terceiro filho do comerciário Gessiner Farias e sua jovem esposa Luiza Gurjão Farias, de prendas domésticas. Recebeu o nome de Bergson.
Desde muito cedo mostrou-se curioso e perspicaz quando com pouco mais de três anos de idade, perguntou a uma Tia-avó viúva porque ela não tinha filho, obtendo a resposta “ Porque Deus não quis que a tia Bia tivesse”. Bergson prontamente oferece-se para ensiná-la a ter um; Tia Bia era senhora da Igreja, filha de Maria e profundamente religiosa; ao ouvir o gentil oferecimento alarmou-se de tal maneira que ficou parada e sem fôlego, só mostrando reação depois que ouviu: “ a Senhora entra no quarto, fecha a porta, deita na cama e manda chamar a Dona Dudu (a parteira) que foi assim que a mamãe fez!
De outra feita quando teve dor em um dente de leite foi levado ao dentista; sentado na cadeira de paciente, observava tudo com muita atenção; derrepente descobriu um tubo fino de onde jorrava água dentro de uma pequena bacia e, um ventilador funcionando sobre uma estante alta: Virou-se para mamãe, e perguntou com lógica maior que sua idade: “Mamãe essa água vem daquele cata-vento?”. Este é o Bergson que eu conheci, com quem brinquei, briguei, o meu irmão e com quem só pude conviver até os 21 anos: o meu amigo, companheiro, o protetor e o beijador oficial da família, nomeado pelo papai. Não precisa nem comentar o quanto ele aproveitou-se do cargo.
Outro acontecimento que mostra seu temperamento e sua personalidade aconteceu quando Bergson tinha aproximadamente 16/17 anos: ele estava sentado na varanda de casa estudando, quando um Senhor humilde e mal tratado pela vida, encostou-se num muro dizendo: “Moço me dê um dinheiro para eu pagar um sangue, pois minha mulher está grávida e precisa de sangue”. Bergson olhou para o Senhor e respondeu: “Ê Companheiro tá difícil, eu também não tenho dinheiro, mas tenho sangue, serve?” Ao receber resposta afirmativa do desesperado brasileiro, colocou-o dentro do carro e foram para a Santa Casa de misericórdia.
Em 1969, Bergson conversando com o papai falou da necessidade de sair de Fortaleza, pois aqui Ele não via mais perspectivas de futuro, pois havia sido expulso da UFC, seguindo então para São Paulo e posteriormente para a região do Araguaia. A família não tinha idéia do que estava acontecendo no Araguaia, e que ele tinha ido pra lá.
Araguaia
O Estado brasileiro ainda está devendo às vítimas da chacina do Araguaia e aos familiares, primeiramente o direito à verdade dos fatos acontecidos na região, seguindo-se o direito de cultuar-se a memória dos que lá tiveram suas vidas covardemente tiradas, sem que lhes fosse concedida nenhuma chance de defesa. Quais crimes foram a eles imputados?
Atrevimento? Audácia? Sim! Mas isso não são crimes, e sim características de pessoas idealistas e sonhadoras. Por que rotulá-los de guerrilheiros? Na verdade eram jovens guerreiros lutando pela volta de um Estado Democrático de Direito ao nosso país.
Quando foi comunicada a morte do Bergson no Araguaia, à minha tia Maria e a mim, eu particularmente não acreditei, e acho que demorei 37 anos para aceitar a morte dele, pois sempre existiu a esperança dele estar vivo refugiado em algum lugar. A propósito a nossa Tia Rita Marques por 3 vezes representou a nossa família em comitivas que se dirigiram ao Araguaia com objetivo de encontrar quaisquer informações sobre os bravos guerreiros que tombaram nos combates ocorridos lá. Seria uma grande alegria a presença nesta solenidade desta amada Tia e que por motivo de saúde não pode estar aqui, mas tinha o Bergson como um filho homem que não teve.
Então veio a confirmação pelo Ministro Paulo Vanucchi, da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, de ser o X2 os restos mortais do meu irmão. O primeiro momento foi de surpresa e paralisia, para em seguida nos envolver um sentimento de felicidade, pela possibilidade de um reencontro com o Bergson. Que é isso que está acontecendo agora. No entanto para a realização deste reencontro foi necessário o trabalho e empenho de uma rede de brasileiros (da anistia, dos Dir. Humanos, dos grupos Tortura Nunca Mais, dos Grupos de Familiares, da Imprensa e de pessoas apaixonadas pela estória e idealismo desses jovens brasileiros, que agora agradecemos de todo coração o apoio e a solidariedade para com nossa família, e aos quais estamos unidos na luta pelo reencontro dos familiares com seus entes queridos que merecem um sepultamento digno. Nossa família considera um privilégio e um golpe de sorte o Bergson ter sido primeiro encontrado, segundo identificado e terceiro devolvido para que pudéssemos sepultá-lo. Era o sonho da minha Mãe morrer só depois de enterrar seu filho. Hoje, este sonho está sendo uma realidade para nossa família, mas continuamos solidários às famílias que não tiveram ainda o mesmo privilégio. Agradecemos o apoio recebido por todos que colaboram durante estes 37 anos para que esta solenidade hoje fosse possível, aos amigos nossa gratidão. E você Bergson, meu querido irmão, agora de volta ao seio da família descanse em Paz.

TÂNIA GURJÃO