terça-feira, setembro 12, 2006

Era madrugada e encontrei a Milena debruçada na janela. O vento frio entrava na sala e fiquei observando-a por alguns instantes. Dorminhoca como é... o que estava acontecendo? Me aproximei e indaguei: está triste, preocupada? Não, mãe, estou observando aquele homem. A pracinha estava iluminada e lá estava ele, andava rápido, circulava a praça, falava com as árvores, gesticulava, catava alguma coisa no chão que não existia, parava e começava tudo novamente. Apesar de tantos movimentos, seus gestos eram lentos, sem pressa. Parecia não sentir frio. No chão, um saco que parecia carregar roupas. Era um ritual que só ele era capaz de entender. Céu estrelado, silêncio acolhedor, tudo tranqüilo. Vamos dormir, está tarde. Ela sorriu e me olhou silenciosa.
Já sei. Quer levar uma merenda para ele.
Sorriu aliviada e fomos preparar leite quentinho com nescau, sanduíche de queijo, bolachas cream crack. Perguntamos o porteiro se o conhecia
É a primeira vez que aparece por aqui.
Atravessamos a rua calma, mas o coração batia acelerado. Fomos nos aproximando devagarinho. Era alto, branco, roupas mal arrumadas, mas limpas. Nos olhou e ficou parado. Olhos azuis, olhar profundo que nos comoveu. Colocamos a comida perto dele. Tome, o leite está quentinho. E fomos nos afastando com receio. Quando já estávamos atravessando a rua, ouvimos algumas palavras que não compreendemos e em seguida falou: Tenho feijão, quer? Nos impressionamos como, em meio à distância, havia um gesto de pronta solidariedade.
Voltamos à janela. Sentou no batente e calmamente examinou a merenda. Cheirava e colocava no chão seguidas vezes. Tomou o leite com as bolachas e o sanduíche ficou esquecido na calçada. Olhava o copo na luz e ficava rolando... rolando. Voltou para o seu ritual. Falava com a árvore, catava coisas no chão que não existiam, gesticulava... Ficamos conversando até quase o amanhecer. O sono passara. Quem seria ele, de onde viera, o que significava aquele ritual no seu mundo distante? Eram muitas perguntas que não podíamos responder. Várias vezes quando olhava as noites calmas e frias procurava aquela imagem na praça do homem desconhecido e anônimo, mas que, apesar da loucura aparente, tinha um olhar profundo que nos comoveu. Nunca mais apareceu. Deve estar fazendo outros rituais, em outras praças.