quinta-feira, dezembro 01, 2005

O Pé Quebrado

A fisioterapia é um exercício de paciência. Hoje completo trinta e três sessões. Estou muito melhor, graças a Deus, mas como o pé continua inchando, não tem outro jeito...
A clínica é ampla, e o movimento de clientes é muito intenso. Pessoas que entram, pessoas que saem, raramente dão bom-dia ou até logo. Sei que não é fácil conviver com a dor e o desconforto. Na sua maioria são idosos. Cadeiras de roda, muletas, rostos tristes e tensos. Enquanto chega a minha vez, tento adivinhar o que "vai na cabeça" de cada um deles. Tempo que aproveito para refletir sobre a velhice e a necessidade de ter uma vida mais saudável. O silêncio na sala é quebrado sempre que os aparelhos disparam quando completam seu tempo. É a hora de avisar a fisioterapeuta.
Fulana, terminou.
Vou já seu fulano,
um minutinho,
estou indo

Estão sempre sobrecarregadas.
Sexta-feira, pela primeira vez, fui chamada para uma das camas do grande salão, que sempre está ocupado. Até aquele dia, só tinha sido atendida nos boxes individuais. Na cama vizinha, um senhor espera atendimento. Me olha e pergunta sobre a fisioterapeuta, era seu primeiro dia.
ela é um doce de pessoa, alegre e delicada, está sempre de bem com a vida
Me responde, aliviado: que bom, tive que casar três vezes para poder acertar. Fiquei alerta para entender tudo que queria me dizer com aquele comentário. Não precisou muito tempo. Logo iniciou o seu monólogo: fui uma criança muito danada e apanhei muito do meu pai, não se referiu a sua mãe. Casei com dezenove anos, e ela tinha vinte e nove. Cedo me separei, tenho um filho de vinte anos que mora em outra cidade com a mãe, quando preciso encontrá-lo tenho que viajar.
Fala com entusiasmo em sua terceira mulher.
Ela não trabalha fora e dá conta de tudo, é exigente com as crianças, que têm horário pra brincar, estudar, computador.
Sorri quando fala na caçula de três anos e compara a diferença de tratamento entre ela e o filho de onze anos. Com ele foi muito enérgico, mas ela faz tudo e não é repreendida por mim, a mãe é que resolve. Seu casamento está uma maravilha, acha que desta vez acertou.
Mas ela foi orientada... Quando estou calado é porque não gostei de alguma coisa, não adianta insistir, só converso quando passa tudo, foi a maneira que arranjei para não magoá-la.
Tem planos de ir morar numa cidade do interior, busca uma vida mais calma.
Mudei muito depois que sofri um acidente, agora não vivo correndo, se chegar atrasado no trabalho, cheguei.
Tive vontade de conversar sobre a forma como lidam com as crianças, mas deixei que terminasse sua conversa e entendi sua expectativa com relação à fisioterapeuta. Dúvidas, indecisões, inseguranças, certezas e incertezas. Mas gostei de ter podido ouvi-lo. Terminei meu tempo e fui embora um pouco mais leve, talvez.
Segunda-feira novamente sou atendida no salão. A moça ao meu lado reclama do joelho, o médico proibiu, mas não quero nem saber, não posso parar a academia Bonita, corpo sarado, boazuda, o short jeans parece que não foi vestido, mas colado ao corpo.
O senhor da cama do outro lado fala que já me encontrou em algum lugar e conversa calmamente sobre sua vida profissional, aposentado, mas não deixou amigos no trabalho. Na época da repressão, foi punido e espera uma indenização. Fala da morte de um irmão e da sua adolescência na rua Dom Manuel. Terminamos descobrindo amigos em comum. O senhor da sexta-feira, cujo nome não sei, entra e cumprimenta a todos. De repente, todos estavam envolvidos na conversa, sobre suas mazelas físicas que os tem levado a fisioterapia. A sala parece acordar, é a primeira vez em que sinto vida naquele local, observo o barulho da sala, parece ter ficado mais clara. Meu tempo acabou e fiquei ainda uns minutinhos participando daquela conversa. Vamos esperar para ver se muda alguma coisa. Saí com vontade de cantar. Algumas pessoas acreditam em destino, outras em encontros de vidas passadas, outras iriam questionar por que depois de 28 sessões é que fui achar uma vaga no salão, e conseqüentemente, encontrei aquele senhor. Sei lá... São momentos diferentes que temos que viver para aprender mais com outras pessoas.